Bem gente, estou inspirado esses dias, aqui vai um conto que queria escrever já a um tempo.
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O VENDEDOR DE SONHOS
Prologo
A chuva banhava meu corpo enquanto eu caminhava. Nada importava, nada
mais era relevante, além da chuva que lavava minhas almas.
Eu segui caminhando por horas, ou talvez segundos, o tempo não importou
para mim, só a chuva que purificava minhas almas e limpava meu corpo.
Antes me sentia sujo, em corpo e espirito, criatura banal, mas agora tudo fazia sentido, eu havia renascido de meu casulo. Meu
casulo feito de sonhos despedaçados.
Não pense mal de mim caro leitor, não ouve mortes, não ouve dor física.
Além da minha.
Porem o que aconteceu dentro daquelas colunas circulares foi muito
pior, porem muito melhor.
Eu vi o caos e o caos me viu, nos amamos e nos unimos, porem, tudo tem
sua consequência.
Para mim, viver para sempre, graças as almas que agora vivem em meu
corpo, em sua dança de êxtase, moradoras de meu coração.
Isso para mim não se tornou uma benção. Não existia mais meu antigo eu,
agora nos éramos 3 almas, unidas em um só corpo, ou caso queira olhar por outro
ângulo, um corpo com 3 almas, condenado a vagar pelo mundo. Nós somos legião,
nós não somos mais humanos.
Caos, esse seria meu nome, o nome daquele que me amou, daquele que
tocou minha alma com seu poder e que me tornou o que sou.
Agora, eu, Caos, sem sexo, sem cor, sem nação, sem passado ou presente,
sou um vendedor de sonhos, um mercador
de artigos para o Destino.
Essa é a historia de como eu me tornei o que sou. Essa é a Historia
anterior a chuva que lavou minhas almas.
Capitulo I
O sol banhava o campo de trigo que se alongava pelo horizonte, eu e
meus amigos estávamos ali, sorrindo para o céu cor de safira, hora azul e hora róseo
que se alongava em mais um nascer do dia.
Eramos três, Eu, Felipe e Camille.
Camille tocava sua Harpa como que estivera em um transe, com seus olhos
fechados, privando o mundo do violáceo de sua íris, deixando que seus cílios pesados
se tocassem. Seus longos cabelos vermelhos sendo acariciados pelo vento, sua
pele de leite salpicada de sardas avermelhadas e seu sorriso que iluminava o
mundo.
Felipe pintava seu quadro, imortalizando o horizonte com suas ligeiras
e precisas pinceladas, misturando as tintas e alisando com sua pericia a tela
branca que se transformava perante meus olhos.
Seus altivos olhos de uma profunda cor canela emoldurados pelo negro de
seus cílios focavam hora o céu, hora a terra e hora a tela. Seus fortes braços
e corpo definido, brilhando com o suor que escorria em sua pele bronzeada pelo
sol, enquanto ele movimentava o pincel pela palheta de tintas e pela obra, quase
viva, que começava a nascer. Seus cabelos curtos e negros brilhavam, pelo
conjunto de suor, luz do sol e vida, que pulsavam dele para o mundo.
Eu estava ali, em cima da arvore que dava sombra para nosso pequeno paraíso,
enquanto sentado olhando o nada, hora ouvindo a musica, hora vendo a pintura, deixava
minha mente vagar pela poesia que em um
papel eu rabiscava ligeiramente, deixando minha mente fluir pelo infinito.
Não sou tão vivaz e brilhante quanto
Camille, nem tão atlético e alegre como Felipe, sou só eu, Daniel, com minha pele cor de especiarias,
meus cabelos castanhos encaracolados e meus olhos, que se desfocam e correm o
mundo em minha mente.
Terminando de escrever, respirei, senti aquele momento que sempre
ocorria, a pausa, a pausa que ocorria ao mesmo tempo em todos nos, seguida do
momento onde algo era liberto, onde tocávamos a alma do mundo, onde o prazer
era puro caleidoscópio de emoções.
Mirei o papel, a harpa começou, brilhante e calma introdução, seguida
de traços firmes sobre a tela, seguindo o ritmo, seguindo a energia que nos
circundavam, tudo estava novo, tudo era arte.
Minha voz começou quase por sua própria razão, cantando o poema que
estava no papel, eu me sentia um maestro para eles, eu sentia a dança, eu
cantava a dança que controlava o mundo, eu podia ver ela. Ali sim, eu me sentia
vivo, unido ao todo.
“Venha som, doce paixão.
Canto sobre o tempo.
Venha tornado, venha tufão.
Leve fúria do vento.”
Senti a mudança, junto com o fim de meu verso a harpa mudou, ouvi as
furiosas pinceladas rítmicas. Comecei o segundo verso.
“De mar a mar, de luz a dor.
Liberte-se, correnteza de raios.
Vinde ligeiro, sobre o por-sol.
Vinde estrelas de março.”
Mudando para um lento e triste fim começamos em uníssono o terceiro
verso, a tensão poderia ser sentida, o mundo nos ouvia, minha voz tocava a existência,
esse foi nosso maior erro, tocar o intocado.
“E no final, ao som da tristeza.
Caia as flores de aço.
Caia rios de sideral espera.
Caia a luz sobre o mormaço”
Abri meus olhos, as flores caiam levadas pelo vento, a nuvem negra
cobria o horizonte, os raios vibravam intensamente e uma nevoa branca cobria o
mundo a nossa volta, vinda dos rios e lagos que nos circundavam.
Rimos maravilhados pelo que já havíamos descoberto a algum tempo,
juntos, podíamos dançar com a existência, juntos, criando nossa arte, poderíamos
pintar com as tintas de Deus e tocar o instrumento do Divino.
Minha voz era a voz do Destino, ou o destino controlava minhas
palavras? Eu acho que era o único que se interrogava. Eu deveria ter pensando
mais nisso.
O quadro estava pronto. Ele era lindo e aterrorizante ao mesmo tempo.
Ele era vivo.
Ele era uma foto da mente do Tempo.
Nos éramos muito imaturos para entender isso.
Rimos do poder em nossas mãos.
Capitulo II
Caminhando de volta para casa, margeando o rio que calmo fluía, conversávamos
sobre banalidade até que ouvi a voz de Felipe, puxando de minha atenção.
Ele falava de um livro de seu pai, algo sobre magia, após mover o mundo
a nossa volta, por que não tentar algo maior.
Ele falava com eloquência, pelo jeito tinha treinado. Seu sorriso e
seus olhos dominavam todos antes mesmo de seus argumentos.
Eu não era imune a seu encanto.
Camille já parecia convencida.
Eu estava me fazendo de difícil. Ele não poderia se considerar um gênio.
Pelos planos deles seria simples.
Camille tocaria uma partitura que o livro pedia para ser tocada,
enquanto um circulo com símbolos misteriosos seria escrito por ele sobre o pátio
do templo.
Eu deveria falar algumas palavras, invocações para um Deus a muito
esquecido.
Assim poderíamos receber o maior dos presentes, segundo o livro pelo
menos.
Eu tinha algumas interrogações, e mesmo fascinado, e louco para fazer
isso, tinha de me fazer de difícil. Interroguei sobre meus pontos principais.
Olhando com cara de desdém comecei.
Então, teremos que invadir o templo, no meio da noite, carregando a
harpa de Camille.
Logo fui rebatido com duas verdades que já conhecia. Felipe era filho
do Grã-Sacerdote do templo. O templo também possuía uma harpa em seu pátio.
Continuei logo depois, mesmo estando surpreso pela rapidez que me
rebateram.
Vamos invadir o templo, para fazer um ritual, onde os efeitos podem
ser, não sei, no mínimo estranhos, existindo a chance de sermos presos por
invasão, filho ou não do sacerdote?
Vai haver uma festa, amanha a noite no palácio, eu finjo que estou
doente, fujo das amas quando meus pais saírem. Disse Camilla com um sorriso de
quem sabia que estava fazendo algo errado, mas divertido.
Felipe começou logo depois. Eu vou ficar limpando o tempo, como castigo
por ter fugido semana passada e sido pego conversando com você.
Terminou rindo e olhando para mim fazendo uma careta de nojo e dizendo,
imitando a mãe dele, plebeu imundo.
Todos rimos.
Eles tinham um plano bem bolado, eu estava sendo convencido.
Uma ultima pergunta. Disse com um tom mais serio.
E se esse “Maior dos presentes” não for algo que queremos?
Eles riram, ele olhou bem para meus olhos, dizendo. Logico que queremos
ele, é o maior dos presentes, o maior de todos.
Eu estava convencido.
Nos encontramos então no templo, amanha pela noite?
Ouvi um sim em uníssono.
Preciso levar algo para o rito? Perguntei encabulado, não possuía muito
dinheiro, afinal, um órfão não possui muitas coisas.
Nada além de sua voz.
Camille disse com um sorriso.
O mundo era simples.
As ilusões de nossas palavras e atos cobriam nosso mundo.
Eramos condenados indo até a forca.
O preço seria alto.
Porem eramos tão felizes.
A noite caia pesada, estava eu, ali, mal vestido sentindo o frio do
inicio da primavera. A nevoa poderia ser cortada com uma faca.
Como combinado fui até o portão lateral, com um medo cada vez mais
crescente coloquei minha mão no ferro frio do portão. Colocando força nele
senti a pesada barreira cedendo, abrindo a meu comando. O frio em minha barriga
só aumentava, não sabia mais se era pela temperatura ou pelo medo de ser pego. Isso
com toda certeza seria punido com bem mais do que açoites na praça, o que eu já
estava acostumado naquele tempo.
Cruzando o jardim inicial, sentindo o aroma do jasmim e das gardênias que
começavam a florir fui caminhando pelo caminho de pedra negra que levava até o pátio
que iriamos usar, ele ficava escondido da vista do templo, coberto por arvores
floridas de um vermelho intenso.
Sai do caminho de pedra, indo pela grama, paços curtos, olhos
assustados, ouvidos atentos.
Passando pelas roseiras que roçavam minha pele, ferindo meus braços
desnudos cruzei o terreno, entrando no pátio circular, contornado de colunas
intercaladas, brancas e negras, mármore e granito, luz e sombras. A almas e o
corpo.
No chão, mosaicos com um Sol e uma lua roubavam a atenção de seu oposto,
a abóboda celeste, que em toda sua gloria, brilhava com estrelas argênteas.
Levei um susto que roubou minha voz, quando vi Felipe com um Cervo
morto a seus pés, e um pincel grande em suas mãos. Ele estava praticamente
banhado no sangue do animal. Enquanto concentrada, Camille se preparava já
sentada a frente da Grande harpa de bronze que enfeitava o pátio do eterno
eclipse.
Já estávamos começando sem você. Brincou Felipe com um sorriso.
Que nojo, por que matou o pobre animal? Disse olhando a cena tão
estranha a minha frente.
Esta no livro, é a tinta para os sinais. Disse Felipe.
E você tinha que se banhar nele?
Sim. Pelo que parece tem de ser. Felipe fazia uma cara de nojo.
Rimos até ouvir o som da voz de Camille nos repeender.
Estamos atrasados, estou pronta, podemos começar? Disse com uma voz
impaciente.
Vamos.
Me entregaram uma pagina do livro, Felipe mandou eu ir para o Leste, virado
para o Oeste, e ao sinal, o velho sinal da pausa, começar.
A pausa durou um pouco, muitas respirações banhadas com o aroma ocre do
sangue do Cervo, misturado com o doce
das rosas, gardênias e jasmins. O mundo era um misto de sensações. Tudo parou
na grande pausa, em uníssono começamos.
O som da harpa era rítmico, forte, invocando não só o som, mas todos os
sentimentos da alma humana. Ela inspirava medo e paz, amor e ódio, ira e
harmonia, o desejo e a repulsa. Ela tocava com a alma, para almas.
Pude sentir o puxão para minha vez, comecei a recitar as palavras em
uma língua que não conhecia, mas para mim tudo fazia sentido, mesmo não sabendo
o significado das palavras, minha voz ganhava entonações doces e rígidas, com
raiva e com amor, fúria e carinho, ganhando alturas como o grito dos trovões ou
calmas como um murmurar de um rio.
Na minha frente Felipe, em transe desenhava símbolos que nunca havia
visto antes, traçando tal qual um animal que caminha, e em vez de pegadas e
marcas, tal qual um dançarino que corria em espirais a ribalta, traçando sinais
ao vento com seus movimentos graciosos, os símbolos surgiam, traçando o chão do
pátio.
O tempo passava sem que víssemos, o mundo corria hora com a velocidade
da águia que bate suas asas no céu, hora com a velocidade das arvores que
observam o mundo em seu lento crescer.
Tudo fazia sentido, tudo era incrível, o poder nos rodeava em espirais
de fumaça e nevoa.
Com a luz da lua banhando nossos corpos, nossa arte, nossa união. Pude
sentir o peso a nossa volta, a leveza no centro, percebi que não mais lia o
papel, nem Camille lia a partitura, e a muito Felipe parou de copiar os traços.
Estávamos em nossa dança, em nossa arte, em nosso momento.
Só continuávamos, então aconteceu. O Clarão.
O mundo se abriu em lua e sol, o mundo se dividiu em dois.
Do leste ao zênite o mundo era dourado e vermelho. Denso, belo e
masculino, pingando o desejo pelo embate iminente, ali estava Felipe, em pé, os
olhos brilhando com o fogo do sol, com o corpo vermelho do sangue do sacrifício,
nu, olhando para mim com um sorriso que não lhe pertencia.
Eu estava com medo.
Do zênite até o oeste o mundo se tornou azul e prateado. Leve e húmido,
belo e feminino, pingando calma e serenidade, morte ao mesmo tempo vida. Ali
estava Camille, nua, em pé, com os olhos brilhando com os raios da lua.
Sorrindo um sorriso que não lhe pertencia, com uma seriedade em seu rosto que
eu nunca tinha visto nela.
Eu estava confuso.
Ambos apontaram para mim. Suas mãos se moveram em sincronia, e ambos
sorriram, antes de falar em uníssono, como uma só voz.
Invocador, ouça a voz do caos. Doce
Daniel, ouvimos seu chamado, ouvimos o clamor de suas vozes. Fui despertado de
meu sono para que vocês adentrem nas portas secretas. Para que cruzem o tempo,
para que cruzem as definições.
Lagrimas corriam pelo meu rosto enquanto via o lento caminhar do
universo em harmonia. Não eram camilla e Felipe, eles não estavam ali, o mundo,
em sua nova harmonia me chamava, a musica que rege o universo agora podia ser
ouvida alta e clara. Eu estava com dor.
Daniel, receba o maior dos presentes, receba o caos em seu coração.
Receba a união plena. Torne-se Deus comigo, torne-se o inexistente. Esse é o pagamento pelos sacrifícios
a mim ofertados.
Ouça meu nome. Receba sua benção e maldição.
O nome foi sussurrado em meu ouvido, quente porem frio, húmido porem
seco, calmo porem em fúria. Um nome tão longo que não pode ser dito por bocas
humanas, porem tão curto que não pode ser entendido por ouvidos profanos.
Senti o mundo se dissolver, ou seria eu me dissolvendo no mundo?
Senti o dissolver da realidade, o inicio de minha sina.
Noite e dia, lua e sol, vermelho e azul. Felipe e Camille. Tudo se
dissolveu e se uniu a mim.
Ali estava eu, em pé, no centro do circulo.
O sol brilhava em meu olho direito. A lua brilhava em meu olho
esquerdo.
Meu corpo estava banhado com o sangue do Cervo. E meus dedos sentiam a
dor por ter tocado a harpa tão intensamente.
Olhando a minha volta pude ver, Felipe jazia morto no chão a meu lado.
Camille abraçava a harpa com seus olhos apagados. Ambos morreram, eles foram
meus sacrifícios mais doces, porem, ainda estavam ali comigo, minha mente
estava banhada com suas emoções, memorias, sensações, meu corpo lembrava de
seus toques, suas dores, seus prazeres.
Eles estavam ali, agora não existia mais Camille e Felipe, agora não
existia mais Daniel.
Eramos um só. Eramos tudo e nada.
Ouvi a voz do Deus sussurrando em minha mente.
Que esse seja seu premio, senhor do Destino a sua volta, que essa seja sua
punição.
Qual é seu nome, Senhor dos sonhos e das conquistas?
Eu disse, com minha voz recém conquistada, que não só guiava a sinfonia
a minha volta, mas pintava o que Deus pensou e tocava a sinfonia em todos seus
instrumentos.
Caos, que eu seja o que me guiou e o que me envolve.
A chuva caia a minha volta.
Os sonhos de três pessoas morriam ali naquele pátio. Esses foram nossos
sacrifícios.
Eu comecei a andar sem rumo, lavando minha alma, meu corpo e minha
mente.
Eu havia renascido do limiar do
mundo. Eu havia contemplado o incontemplável, tocado o intocável.
Não havia mais tempo para mim, não havia mais sexo, não havia mais
limitações, eu era tudo.
Hora homem, hora mulher, hora velho, hora novo, hora belo, hora feio.
Eu era um sonho, ou um pesadelo. Eu era um Deus, vestindo roupas de sonhos e
nevoas, colecionando historias para satisfazer meu coração, conhecendo destinos
para entender o meu.
Eu me tornei um vendedor de sonhos, enquanto recebia meu pagamento em
canções que ecoavam das almas humanas.
Eu me tornei Caos.